I
Gosto de feiras populares, mais do conceito do que propriamente de as frequentar, mas nesse verão cedi ao pedido de duas amigas – que no meu mundo imaginário se chamavam Timas e Cora – de as acompanhar. Assim fiz.
Uma das primeiras diversões que nos atraiu foi uma daquelas que andam à roda rapidamente e em que as pessoas chegam ao final, orgulhosas por terem aguentado o conteúdo do estômago, hmm… no estômago, digamos assim.
Infelizmente, cada “carrinho” era destinado apenas a duas pessoas, pelo que acabei por ficar de fora, sozinha, com um lugar vago ao meu lado. Mas não por muito tempo.
Nem cinco minutos passados, um jovem loiro, alto, magro com uns olhos azuis a fazer lembrar as águas dos mares que os homens do meu mundo cruzavam, mas antes das tempestades de Poseidon, perguntou:
“Este lugar está livre?”
Respondi que sim, tentando lutar contra a minha timidez e com um súbito calor que me subira às bochechas. Já tinha reparado nele antes de reclamar o lugar ao meu lado; será que tinha reparado?
O resto é história.
Mais cinco minutos e o braço dele estava à minha volta. Timas e Cora olharam para trás para se certificarem de que eu estava bem, mesmo antes dos carrinhos começarem a girar. Nunca mais vou esquecer o maxilar inferior das duas a ceder pesadamente à gravidade e ao choque de me ver em tal clima de intimidade com o jovem que acabara de conhecer.
Agora, tantos anos depois, tento lembrar-me deste dia e tenho a impressão de que nem falei muito no momento em que o conheci. A ousadia dele desarmou-me de tal forma que não consegui encontrar nada minimamente engraçado ou encantador para lhe dizer. O feitiço foi de tal forma poderoso que me deixei levar.
Para mim ele era Alceu e eu era Safo, os dois poetas gregos apaixonados da Antiguidade. E eu não ia deixar este pseudo-romance perfeito escapar. Afinal, a minha realidade e a minha imaginação tinham-se finalmente cruzado e fundido. Ou assim esperava.
“Alceu” acompanhou-nos (ou perseguiu-nos?) durante o resto da nossa visita ao Senhor de Matosinhos. No final, despedi-me dele com a esperança de obter um número de telemóvel através do qual trocaríamos mensagens românticas e inspiradas durante meses, até que nos víssemos novamente. Eram essas as regras da adolescência. De qualquer das formas, eu dei-lhe o meu.
Ele tentou despedir-se de mim com um beijo, que rejeitei mais pela força do eco das regras de decência que a sociedade (injustamente) me incutira, do que por verdadeiramente não o querer.
Mas o espírito poético de Alceu era instável e impetuoso e não ia desistir enquanto não tivesse o que desejava.
E assim parti. Alceu seguiu-me. Timas e Cora deixaram-nos.
II
A partir deste momento de viragem, Alceu mudou completamente, ou então fui eu que perdi o meu filtro cor de rosa da situação.
Depois de uma entrada forçada e gratuita no metro, em que Alceu me puxou pelo braço, fomos obrigados a sair quando veio o revisor. O meu dinheiro tinha oficialmente acabado para apanhar um novo meio de transporte, mas o rapaz ajudou-me a chegar a casa.
A caminho, anunciou que iria falar com o meu pai, pedir a benção dele para me namorar. Eu congelei. A vergonha antecipada desta cena deu-me a volta ao estômago e naquele momento amadureci uns bons dois anos. Arrependi-me da minha ingenuidade e dos meus “filmes”. Aquilo era o mundo real e ele não era herói nenhum. Nem herói, nem poeta, nem Alceu. Na verdade, o seu nome era Jean-Pierre e mesmo isso me começava a parecer inventado. Não morava numa ilha grega cheia de templos, nem vivera alguma vez em Lesbos. Era do bairro do Cerco, do Porto mesmo.
“Só a mim…”
Tentei novamente despedir-me dele, agora já com toda a vontade do mundo, mas não consegui. Insistiu em entrar no prédio, mas recusei-me a deixá-lo entrar em minha casa. Fechei a porta à chave e liguei ao meu pai para que me fosse buscar (como já era suposto, aliás, passar o fim de semana em casa dele).
Após alguns minutos em que permaneceu de pé, à porta de minha casa, Jean-Pierre procedeu numa corrida desenfreada por todos os andares do prédio, para cima e para baixo, de elevador.
O meu telemóvel tocou:
“Podes descer.”
Era o meu pai e o meu alívio a chegarem simultaneamente.
Mas primeiro, tinha que engendrar uma forma de não me cruzar com o Jean-Pierre, agora aparentemente tresloucado.
Só havia uma hipótese: as escadas. E assim corri escadas abaixo, seis andares em menos de nada. Corri do prédio para fora também, deixando a porta fechar-se atrás de mim, entrando à pressa dentro do carro e pedindo ao meu pai para arrancar, qual assalto a um banco.
Deixei-me finalmente relaxar, suspirando de alívio.
III
Nessa noite, pensei naquilo que tinha acontecido e que era uma grandessíssima lição para mim. Se aprendi com ela? Sim e não. Passaram-se onze anos e continuo a fazer o mesmo, a deixar-me perder nos meus mundos de fantasia, mas agora tenho mais protecções, mais filtros e até mesmo os mundos imaginários já têm mais vilões. Nem nos mundos imaginários se deve confiar em qualquer poeta lírico disfarçado de herói que apareça.
E ainda assim, quando voltei a casa da minha mãe no domingo, lancei-me sobre o meu telemóvel, deixado a carregar em casa desde essa sexta-feira para saber se tinha notícias dele…
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